sábado, 30 de maio de 2015

Umbral

E simplesmente Lillith odiava os finais de semana! Preferia o desgaste de uma semana atribulada de trabalho ao vazio presente nos seus sábados e domingos vazios. Redundância eterna e reproduzida nas 48 horas que a torturavam.
Clamava pela segunda-feira , ao contrário dos outros bilhões de habitantes deste planeta, o azul.
Aquiesceu ao convite de Malu e Clara para irem a um show gratuito, em comemoração ao aniversário de São Paulo: Ira! Ira para desopilar, ira pra vomitar, ira para fazer de conta que ela poderia sentir-se pertencente à categoria dos outros viventes normais e vibrar por ser “sábado à noite”.
Passou antes na casa de sua amiga Eduarda. Conversaram durante a tarde toda, afinal, era sábado. Ambas precisavam preencher as lacunas deixadas pelas incertezas da vida. E claro, desfazer todos os planos que haviam sido maculados pelo destino. Como uma colcha de retalhos que nunca se acaba, como algo que nunca se finda bonito o suficiente.
Eduarda tem uma certa aversão a multidões, mas acabou se deixando convencer a ir ao show,contanto que ambas não ficassem no “olho do furacão”. Lillith concordou sem nenhuma resistência, pois morria de medo de ser furtada, fato que ultimamente ocorria corriqueiramente.
Começo de uma noite estranha... Havia uma névoa alaranjada que envolvia esta noite de ira, uma energia libertadora que era inalada aos poucos e começava aos poucos a agitar todas as células do corpo de Lillith.
Na hora combinada, lá estavam todas as cúmplices da noite laranja! Lillith , Eduarda, Clara, Marina e Malu,com seu namorado. Namoro novo, ele ainda estava em análise pelas amigas,mas nem desconfiava. Ele falava pouco, pensamos até que fosse mudo. Mas, se fosse o cara capaz de trazer a experiência de amor na vida de Malu, isso nos bastaria. Não seria necessário que ele proferisse uma palavra sequer, bastavam atitudes condizentes com o amor real. Só que de repente, nós nos demos conta que esse amor real era , para a maioria de nós, apenas teoria. Bom, que António fosse então, capaz de converter teoria em prática...
O melhor é que a bolsa térmica com cervejas ficou sob os cuidados de Eduarda e Lillith, já que elas não se embrenharam no meio da agitação popular e preferiram ficar próximas a uma viatura policial que se encontrava no perímetro do show. A névoa se impunha, distorcendo as pessoas que chegavam ao show, era macio, era etéreo...nenhum rosto carregava contornos reais...
Mas o grito saia da garganta! A dança aconteceu no meio da rua! Lillith e Eduarda cederam à névoa, se deixaram envolver e gritaram toda letra, de toda música que tocava. E olhavam provocadoramente a todos os transeuntes sem rosto delineado , sem identidade. Lillith perdeu também...sua identidade acabou caindo na calçada, mas depois a recolheu e enfiou no bolso. As amigas sorriam, cantavam, gritavam, provocavam reações externas, extrapolando toda a ira!
No momento em que as pedras do caminho já haviam sido superadas, que o sábado tornava-se enfim divertido, o show acabara. Fácil decidirem induzidas pela alegria proporcionada pela névoa...a noite não podia acabar! Não aquele sábado alaranjado...não aquele sábado de pessoas distorcidas...
Eduarda seguiu para sua casa, era casada. Malu, seguiu para sua noite com o namorado. E nem Lillith, nem Clara, nem Marina deixaram a noite acabar...seguiram para O Umbral.
O Umbral era um bar novo do bairro, especializado em rock e em almas sedentas por companhia. Destinado a proporcionar aos clientes os preciosos momentos de escapismo deste emaranhado de erros que constitui viver! E tudo o que o grupo de amigas almejava, certamente encontraria lá: cerveja e riso fácil dentro da noite alaranjada.
Chegando ao bar, Lillith reconheceu o dono do estabelecimento, suave com seu sorriso juvenil. Sim, já o conhecia e neste momento não havia importância alguma em saber de qual local e em qual ocasião. Tudo o que importava era saber se a cerveja estava gelada o suficiente...
A noite seguia...e quando há mágica no ar, as crenças mortas ressuscitam e invadem as almas dos incrédulos. E ainda havia a música, aquele cara que cantava o rock que embriaga e que em tempos de recessão amorosa, complementa. E o vírus maldito da esperança acometeu o espírito de Lillith. Ela queria muito que Clara fosse feliz no amor e havia Zion, um amigo que talvez pudesse ser o par ideal para sua amiga, num mundo absurdamente real. E Lillith ligou para ele, sem sucesso. Não seria naquela noite...e a noite continuou sendo.
A rua chamava Lillith, com seu contorno sombrio. Com a lua escondida sob os galhos da árvore frondosa. A rua gritava e Lillith tentava se esconder dentro de si mesma, se agarrando ao fantasma que morava dentro dela, tapando os ouvidos. O uivo da rua rasgava os tímpanos de Lillith e ela jogou seu corpo na rua, enquanto sua alma pairava ao lado da lua que crescia...
O corpo seguiu outro corpo ,por perto da árvore frondosa. Ao longe, sentada num bloco lunar, a alma de Lillith assistia. O fantasma também via tudo, imparcial, distante, frio, indiferente. E Lillith deixou que o corpo sentisse vida...
Um solavanco retirou Lillith de seu estado de sonambulismo, ela ouviu uma frase:
- Eu tavo...
E não ficou para ouvir o resto...correu em busca de Marina e Clara. A rua vazia a conduziu novamente ao Umbral. Lillith correu para o banheiro, onde lavou o rosto e olhando para sua imagem refletida no espelho, entrou numa transe hipnótica que durou horas...
Encontrou Clara na varanda de uma choupana, ao lado de Alexandre ( era assim, simplesmente todas as informações chegavam claramente nas visões de Lillith). Pareciam felizes...
Piscou e viu Marina sentada com Rodolfo, ambos sobre uma imensa pedra, ao lado de um lago vazio de peixes, mas com água cristalina. Pareciam felizes...
Saiu do Umbral, o sol fez seus olhos arderem...colocou o capuz sobre sua cabeça buscando proteção e atravessou a rua...



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