terça-feira, 18 de agosto de 2015

Uma noite ela me disse...

A Primeira Noite Legendária - Desenconto 6

O que há afinal entre o passado e o futuro? Naquele sábado, Lilith e Malu não estavam para muitos questionamentos existenciais, aliás, o que acontecia fora das paredes da casa de Lilith, pouco interessava para elas. Achavam que tudo o que a noite podia lhes oferecer era um pouco de introspecção, cerveja gelada, música baixa, conversa amena e um breve sobrevoo pela região da Faria Lima...coisas básicas que permitiriam que ambas dormissem cedo.
Acontece que o Destino é um deus implacável que normalmente se alia com o Tempo, então a cerveja acabou rápido demais e ainda havia conversa um bocado de conversa para acontecer. Amigas que são, poucas palavras são necessárias para que o entendimento se estabeleça entre elas e sem trocar palavra, através de uma simples e telepática troca de olhares, Lilith e Malu levantaram-se do sofá e saíram em busca de mais néctar da plena luminosidade espiritual...
Olhando para o chão, enquanto conduziam a conversa infinita, os pés pareciam rápidos demais, feito borrões de uma pintura de natureza viva. A noite ao contrário, desenhava nuances em luz e sombra em câmera lenta ao redor das duas. Sem que dessem conta, se viram paradas em frente ao portal do Umbral. Óbvio que não entrariam, não podiam se atrasar para o sobrevoo na Faria Lima: voar, queimar e enfim que ressurgissem das cinzas.
Um cigarro, outro cigarro e indecisão. E então, a noite acelerou repentinamente...
Foi quando Lilith acompanhou com seus olhos a direção que tomava a fumaça de seu cigarro, e encontrou outro olhar, atrás de outra fumaça, no topo da escadaria que dava acesso ao Umbral. Era um “ele” que magneticamente atraiu Lilith...um “ele” de cabelos claros e longos, de olhar que se perdia e que Lilith encontrava, e ela devolvia o olhar com languidez e ele jogava de volta, e foram necessários poucos segundos para que Lilith soubesse que queria estar ali...
Diante da relutância de Malu, Lilith acendeu outro cigarro na tentativa de buscar uma boa argumentação para que ela acatasse sua necessidade de se aproximar daquele “ele”. Nem foi necessário que terminasse o cigarro, havia um outro cara escondido na penumbra do pilar que demarcava o portal do Umbral... perfeito para convencer Malu. E então, as duas passaram a querer estar ali...
Subiram com rapidez impressionante a escadaria que as levaria para o Umbral. Os olhares não mais se desvincularam, por toda a extensão do Umbral e por maior que fosse a distância, permaneciam conectados por uma teia energética invisível. Por alguns minutos, Malu esqueceu-se do compromisso que tinha e determinada partiu para o front daquela guerra silenciosa e travada por uns olhos esquivos no meio da noite alaranjada.
Percorriam o ambiente, voltavam para as proximidades do pilar de aceso, num misto de inquietação e paz, carregando o néctar em copos coloridos, acendendo um cigarro após o outro, trocando poucas palavras. Sem aviso prévio, num ímpeto sem igual, Malu se dirigiu ao rapaz pelo qual ela queria estar ali. Isqueiro?Sim . Era uma noite qualquer, um sábado para não sair de casa, fazendo reflexões sobre o que existe entre o passado e o futuro. Mas, alguma coisa mudaria para sempre...
E foram conversando, se entendendo ,sorrindo para a noite cor de laranja. O nível de entendimento entre eles era incrível, a paz veio com as risadas fáceis e incrivelmente capacitadas para recobrar algumas crenças já há tempos abolidas por Malu e Lilith. Não era possível mensurar o tempo que conversaram, podem ter sido poucos minutos ou uma dezena de horas. A verdade é que havia o voo, o compromisso estabelecido e as duas teriam que deixar Andreas e Johnny seguirem seu caminho. Não era o planejado encontrá-los no Umbral, portanto teriam que cumprir o que haviam prometido, iriam sobrevoar a Faria Lima, queimar e voltar das cinzas. Avisaram aos dois, na despedida dois beijos que ao certo ninguém sabe quem tomou a iniciativa com quem, importando apenas que foram muito auspiciosos.
Elas achavam que nunca mais iriam encontrá-los, eles ficaram com uma promessa pairando no ar nebuloso da noite...
Malu voou, queimou completamente e se recompôs das cinzas; tendo pleno êxito na execução do ritual. Já Lilith, se atrapalhou muito para alçar voo, queimou quase plenamente, mas na recomposição a partir das cinzas, percebeu que restaram algumas partes suas inteiras ...talvez, nunca possam ser recompostas...
Sem delongas, sem refletir muito a respeito da profundidade do ritual de ressurgir das cinzas, ambas retornaram o quanto antes para o Umbral. Na verdade, mais para constatar que Andreas e Johnny haviam se embrenhado na escuridão da madrugada e seguido uma estrada que era só deles. Ao chegarem, em detrimento do que previam os oráculos e as racionais probabilidades, lá estavam os dois com mais um amigo, chamado Gaudério. Mas como nem tudo é fácil para essas duas, ao pedirem mais duas garrafas do néctar, o administrador do Umbral as informou que todo o líquido disponível no estabelecimento havia acabado e que, naquele horário, só havia um lugar no qual poderiam encontrar mais néctar: O Inferno!
Sem titubear, seguiram velozmente para O Inferno, afinal a promessa da noite sem fim devia ser cumprida! Seguiram entre árvores de grande porte, arbustos, ouviram pios de corujas, cruzaram as trilhas que passam perto do Vale dos Ventos. Quando quase chegavam à porta do Inferno, perceberam um amontoado de coisas depositadas numa encruzilhada próxima. Curiosos e empolgados pela noite que seguia divertida, se aproximaram e viram que era um despacho de uma almôndega gigante, circundada por penas amarelas...muito estranho. Mas, nem perderam muito tempo com reflexões acerca disso...era tudo leveza, bom papo e risadas altas cortando a madrugada.
Lilith e Andreas sentaram na guia da calçada, nunca mais pararam de conversar e se beijar. Malu e Johnny estavam de pé, nunca mais pararam de beijar e conversar. Gaudério estava conosco e Malu, solidária que é, achou que devia intervir para que ele também tivesse companhia noite adentro...ou afora. Bem é sabido que ela não enxerga muito bem de longe, a questão é que Johnny também não! E os dois selecionaram uma pessoa que sob a neblina densa da noite e a uma distância considerável,podia até ser considerada bonita. Chamaram a moça para apresentá-la para Gaudério...a lua do céu era nova, pouco servindo para iluminar as ruas. A pessoa foi se aproximando, feito cena de filme de suspense, com passos abafados pelo asfalto...francesa, a moça!” Très chique! Je suis Bete!!!”
Gaudério, tomado por um pânico, se encolheu e emudeceu completamente. Dentro de poucos minutos, resolveu seguir para sua casa, tamanho o medo que sentiu perante a imagem assustadora de Bete. Bem provável que ela fosse herdeira do Inferno...mas, são só suposições. Porém, Andreas e Lilith nem perceberam o aspecto da moça, tão inseridos que estavam num Universo Paralelo criado a partir de suas ideias...Andreas contava meticulosamente sobre sua experiência na travessia do Mar Negro, Lilith não parava de fazer perguntas. Queria saber sobre a Bulgária, a Ucrânia, A Rússia...
Nesse momento, repentinamente, Lilith pega a chave de acesso à Cápsula de Teletransporte com Malu. Sugeriu então a Andreas que a acompanhasse, deixando subentendido que ambos se entregariam a uma experiência intensa . Eles cruzaram pelo atalho, entraram na cápsula e nem as paredes transparentes dela puderam impedir a realização de uma profunda fusão que acontecia a despeito de pessoas passando e espiando o que ocorria em seu interior. Aos menos, a nudez parcial de seus corpos estava protegida do vento frio...
O Inferno estava lotado de almas que buscavam algo para saciar suas infindáveis necessidades: de beber, de comer, de sentir... Malu, uma vez que havia abdicado de usufruir da Cápsula de Teletransporte, resolveu entrar no Inferno acompanhada por Johnny. Entraram e conseguiram explorar até a sexta camada do Inferno. Cansados de tamanha exploração, resolveram encostar numa carruagem que estava parada em frente ao Inferno. Talvez tenha sido deixada ali há muito tempo, afinal é sabido por todos que no Inferno a cronologia é completamente diferente da que temos na Terra. Johnny não quis ficar por muito tempo perto da carruagem, talvez com certo receio do possível confronto com o dono do veículo...
A madrugada seguia, pessoas vieram e foram, mas os quatro permaneciam às portas do Inferno. Esfriara muito, mas nada servia de empecilho ao encontro que se dava. A noite nunca acabou...até que começassem a despontar os primeiros raios de sol...
Resistentes, os quatro seguiram para uma cabana que oferecia café e pão. Permaneceram sentados e conversando até acabar todo o café do estabelecimento. Andreas foi o primeiro a partir, morava nas imediações. Passados alguns minutos, Malu, Johnny e Lilith seguiram rumo às suas casas na Cápsula de Teletransporte. No meio do trajeto, encontraram um ser angelical chamado Punky que os seguiu com o olhar durante largo tempo...
Seria uma benção? Seria bom voltar a crer que havia algo de real entre o passado e o futuro? Seria mais um momento a se perder no meio do tempo?
Ninguém queria saber de nada, afinal não há respostas para quem decide viver apenas no presente. Talvez o ritual do voo dedicado a Fênix tenha funcionado e em meio a tantas máculas do passado, o destino deu um sábio jeito de colocar pessoas boas no caminho das duas amigas. Eram tão similares em suas esperanças, dores, planos, alegrias, histórias...eles poderiam pertencer ao futuro do presente? Tomara...pois havia ficado nas entrelinhas que deviam se juntar novamente em novas noites eternas,etéreas...legendárias.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Confronto ( Mais uma de Usp...)

Todos os problemas da vida moderna são poucos e mesquinhos se comparados com as grandes questões filosóficas já propostas desde a antiguidade. Quem somos? Por que estamos? Para onde e se vamos?
Perguntas simples que não são capazes de revelar qualquer verdade absoluta. Absoluta?
Absolutamente os problemas hoje são de ordem prática e pensando em como faria para pagar meu aluguel foi que acabei entrando nessa ordem de pensamentos...
Olhava para o chão. A calçada na qual eu andava era feita de tijolinhos portugueses assimétricos, sujo, feio, desgastado. Olhei meus pés que andavam e me levavam espontaneamente por um caminho do qual eu havia perdido o controle completamente. Movimentava minhas pernas com o apoio de calçados velhos e rotos, naquele momento meu pé doía e eu não sabia o que fazer para resolver aquela questão prática.
As árvores do caminho, onde estariam elas? Avistei o que seria um Parque, cercado por grades, bem no meio daquele burburinho de pessoas andando tresloucadas e carros passando e prédios novos e prédios novos com arquitetura moderna. Aquelas árvores expressavam minha agonia, seus galhos pareciam tentáculos que pretendiam escapar ao sofrimento de viverem ali isoladas e sufocadas por espécimes feitos de concreto e gigantes, elas alçavam o lado de fora das grades de ferro que as cercavam. De cabeça baixa, percebia que havia mais sombra durante o meu percurso do que eu poderia imaginar...
Eu andava e olhava para o chão, tinha papéis,chicletes,pedras soltas,pessoas encostadas nas paredes vendendo uma sério de produtos, desde eletro-eletrônicos até doces caseiros.
Foi quando percebi uma movimentação vinda de uma loja que vendia telefones celulares. Havia alguns seguranças que corriam enquanto se comunicavam via rádio, desembestavam no meio daquele mar de gente. Em determinado momento, cada um correu em uma direção, todos com rádio em punho e gravata no pescoço. Sufocados talvez, como as árvores, como eu.
De repente, abre-se um clarão em meio a todo o povo que parara em frente a loja para saciarem sua curiosidade, surge então, um segurança, extremamente alto, arrastando com suas mãos de raquete um menino. Paralisei. Aquilo doía mais que meus pés...
Fique estagnada em frente a loja e pude ouvir os comentários que circulavam entre as pessoas aglomeradas e que fizeram questão de investigar a fundo o que havia ocorrido.
Pude ouvir quando um senhor saiu da loja e disse que o garoto havia furtado o aparelho celular mais caro da loja e que sua idade não ultrapassava os 11 anos..."mas tem que punir, tem que prender, já que os pais não sabem criar"
Uma senhora que servia de interlocutora para ele, ainda acrescentou que essa era a consequência de vivermos num país sem pena de morte. Morri um pouco...desnorteada, não sabia para onde seguir,portanto continuei minha marcha de olhos fixos no chão. Melhor assim...
O que as árvores pensariam do diálogo que acabava de escutar? No mínimo,dariam um jeito miraculoso de escaparem das grades do Parque e seguirem rumo a liberdade...
Por um instante tive vertigem e rumei imediatamente ao Parque. Indiferente do que sentia, percebi que uma força muito forte me atraía para lá.
Olhei fixamente para as copas das árvores e percebi um movimento ostensivo nelas.O vento faz mesmo essas coisas, não me admirei e continuei a encarar as árvores.
Como a grande maioria dos moradores da capital, eu não fazia a menor ideia dos nomes das espécies aprisionadas e continuei em minha visita, olhando, inventando nomes.
Os troncos curvavam fazendo com que as copas quase chegassem ao chão, não ouvira na previsão do tempo "possibilidade" de tufão e comecei a duvidar da capacidade do vento realizar aquele fenômeno; os caules se moviam e dobravam como penas. Os galhos se esticavam como braços que se espreguiçam, chacoalhava-se em folhas que planavam no ar e depois repousavam serenas no solo.
Senti então, um tremor sob meus pés. Vi os tijolinhos portugueses explodirem a distâncias que eu nem supunha mensurar. As grades de ferro caiam como se fossem feitas de papel e então, aquelas árvores assumiram a Avenida Paulista, como manifestantes políticos, como transeuntes em dia de Parada Gay...
Não existia mais ninguém, somente eu ,involuntariamente, seguindo as árvores e percebendo semelhanças com os seres humanos: umas eram delgadas, outras troncudas, umas tinham as copas plenas de folhas, outras uma escassez tamanha de folhas, umas com galhos longos, outras com galhos curtos. Folhas verde-escuras, verde-claras,lisas, ramificadas...
O sumo das folhas manchou a fachada do Masp, mancharam a Fiesp, foram espalhando folhas sobre a população. Algumas manchas vermelhas deixadas no caminho,mas o verde imperava...
Ouvia o silvo do vento,abria caminho por entre folhas acumuladas,quis enfim,ser árvore.
Senti então,mãos fortes que me sacudiam...meu corpo estendido num piso gelado...então entendi tudo: sobrevivi ao caos de ser árvore!

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Bairro nobre ( Uspniana!!!)

Existem muitos bairros, muitos barros, muitos barracos, suas escadas e ...uma certa casa branca.
Esta casa branca estava localizada num bairro nobre da cidade de São Paulo e a nobreza desenhava pelas ruas arborizadas, muros altos e imponentes, com ventos que passeavam brincando com folhas pelas calçadas.
Algumas árvores enfileiradas nas calçadas formavam silhuetas assombrosas ao cair da noite, seriam capazes de assustar o mais cético dentre os homens. Havia uma paisagem rara e cara comprada pelos moradores do bairro nobre: havia pássaros, céu azul e portões ornamentados. Folhas secas no chão, um certo ar mórbido e...a tal casinha branca.
Por vezes, porém muito raramente, podia-se ouvir vozes infantis que escapavam por sobre os muros de 3 metros da escola tradicionalmente cara e renomada e havia cadência militar nas brincadeiras infantis.
A casa branca ficava dentre outros tantos muros brancos, uns ostentavam vegetações, outros pichações. Essa casa não era tão grande quanto as demais, era sustentada por um imenso terreno, cheio de vento e folhas secas espalhadas por sua extensão de terra batida e cimento.
Apesar de meu parco conhecimento em arquitetura, poderia facilmente supor que a casa teria no máximo três quartos , sala,copa,cozinha,uns dois banheiros. Úmida, perderia o valor de mercado.
Ninguém sabia quem morava na casa branca , ninguém queria saber...cada um que arcasse com sua própria vida desmoronada, sem importância. Quintal sem cachorro. Sem gato, sem rato,sem sapo, nenhum sapato. Não havia luzes, nem sombras...só paredes extremamente brancas.
Quatro moradores,quatro homens-mulheres,mulheres-homens. Quatro enquadrados em quatro paredes brancas. Cada face, cada pseudo pessoa, cada sombra personificada dentro de um mesmo espaço vazio; cada ser de frente a cada parede. Precisamente, no meio de cada parede branca havia a imposição de um rosto, um morador , a sombra. Cada face com um nariz grudado na parede.
Olhos eternamente fechados de tanto ver o branco, nada ver. Seriam os corpo, almas? Que almas viveriam num quarto entre quatro paredes brancas?
Numa tarde fria de inferno, o vizinho e morador da casa azul, sentiu um cheiro vermelho...
Invadiram a casa branca, arrombando quatro portas brancas...um quarto de sangue espalhado pelas quatro paredes. Manchas vermelhas...

Sepultamento ( da série Uspinianas...)

As vidas daquelas pessoas era completamente separada apesar do grau de parentesco que os unia e à pequena distância que separava suas residências. Acontece que o conceito de família antes de integrar,acaba desagregando a família original. Isso é fácil de explicar...as pessoas se casam, sonham ter filhos,às vezes têm filhos, compram casa na cidade, casa no campo,casa na praia,colocam os filhos nas melhores escolas particulares, viajam para o exterior nas férias, possuem todas as inovações tecnológicas em suas nobres residências; mas se afastam completamente do que é essencial.
Eu andava só nas imediações da Avenida Rebouças, sozinho com meus pensamentos e guardando nos bolsos do suéter minhas mãos, temendo a provável chuva que em breve cairia em São Paulo e que caso se efetivasse, seria a cruel responsável por arruinar minha aparência de candidato a uma vaga de emprego, há muito almejada.
Estava indo para uma entrevista em uma empresa "MULTINACIONAL", orgulhoso do curriculum que ora me possibilitava participar deste processo seletivo. Finalmente a recompensa! Não fora em vão os anos arrastados de dupla jornada,pois a partir dos treze anos de idade eu trabalhava e estudava com afinco, sempre aproveitando oportunidades de fazer cursos extracurriculares:digitação, programação júnior, técnico de manutenção e ar-condicionado,técnicas administrativas, noções de matemática financeira, paisagismo, jazz, técnica de segurança do trabalho , técnicas ninja e milenares de massagem hinduísta, meio-oficial mecânico/hidráulico/eletrizante, respiração tibetana para momentos de crise existencial, dentre tantos outros cursos que não convêm expor neste colóquio.
Vesti meu melhor sapato, calcei minha melhor roupa...comprei terno para ir ao casamento da minha prima Janete...era esse meu traje. Essa prima fez um excelente casamento com o açougueiro do bairro que,por sinal, era primo de quinto grau do dono da padaria e este por sua vez era namorado da filha de meu vizinho.
Nossa, belíssimo casamento! Os pais do noivo alugaram uma casa no litoral norte paulista, de frente para o mar. A festa deu-se na areia escaldante da praia e eles disseram o "sim" perante um lindo pôr-do-sol.
O vestido da noiva era dourado...sua visão envolvida pela névoa criada pelos raios de sol,ofuscava meus olhos, já bastante estremecidos pelo sufoco que eu passava trancado dentro do meu terno preto. Affff! Quanto calor passei naquele dia...mas valeu a pena, me senti confortado por ver minhas tias velhas caindo pela areia como peças de dominó, umas sobre as outras.
Era um tal de pernas para o alto, vestidos longos de cetim preto ou vermelho rasgando pela ação dos tombos que elas levavam; sem contar o desperdício dos espetinhos de carne que,nesses momentos voavam longe e se misturavam à areia da praia. Sorte de algumas crianças esfomeadas que aproveitavam e comiam tudo o que caía ao chão.
Era quase certo que a chuva cairia, como paulistanos, não somos capazes de explicar de onde vem esse dom inato de meteorologistas que carregamos. O sol tostava meu rosto e pelo fato de estar há nove meses desempregado, não dispunha de verba para pegar o ônibus que faria o trajeto até o local da entrevista, fui caminhando e desintegrando sob um calor de 35 graus celsius.
Mais apropriado seria, se eu estivesse usando uma burca,mas não sei se cairia bem para um homem. Homens árabes também a usam? Sei quase nada sobre a cultura árabe.
Acabava de atravessar o trecho da Avenida Rebouças que cruza com a Henrique Schaumman, quando percebi um homem cambaleante a uns cinco metros de distância. Já estava tostado, no inferno,prestes a conhecer o capiroto, não seria sacrifício algum correr em socorro daquele pobre diabo. Cheguei ao lado dele quase desfalecido,mas tive rápido reflexo para ampará-lo quando ele desfaleceu.
Entrei em desespero e nenhum transeunte parava para nos auxiliar. Gritei, me descabelei e transpirei como nunca. Tentei respiração boca-a-boca e nem sinal de recuperação dos sentidos,por parte do senhor. Com ele em meus braços, pude notar os sulcos formados por rugas profundas que se formavam em seu rosto, sua mão magra e frágil segurava fortemente alguns papéis e sentia sua pele extremamente fria. Apavorei-me e foi neste momento que percebi uma viatura policial vindo em nosso auxílio.
A ansiedade tomava conta de mim, estava preocupado em chegar à entrevista de emprego agendada para as 14 horas;olhava o relógio preso ao meu pulso direito quando o policial perguntou se eu era parente da vítima, indagação que respondi prontamente com uma negativa.
Enquanto meu olhar se perdia entre a obstinação de chegar a meu compromisso e aquele homem estendido no chão quente de uma tarde ensolarada, ouvi quando um dos policiais pronunciou o nome daquele senhor: Custódio de Oliveira Filho. Eles o levariam para um hospital nas redondezas...
Fui dispensado pelos oficiais e saí culpado, pesado como o céu que se precipitaria sobre minha cabeça, à frente, somente a promessa de tempestade. A tormenta havia iniciado pelos pensamentos que invadiam minha cabeça, ora com preocupações acerca do Sr. Custódio ora ansioso pela entrevista de emprego tão esperada. Em São Paulo: 13h30. Teria pouco tempo para chegar a meu compromisso, começava a chuva...corri o mais rápido que pude, quando lembrei do professor de física falando:"Não adianta correr sob a chuva porque a superfície de contato é a mesma". Corri mesmo assim...
Subia do asfalto um bafo de calor insuportável e eu tendo que administrar a chuva, o horário, Sr. Custódio, meus sonhos. Em São Paulo: 13h50.
Cada vez que meus pés tocavam o solo, sentia bolhas eclodindo em meus pés e o calor aumentava a dor latejante. Preferi nem pensar em como meu corpo ficaria no dia seguinte.
Eis que finalmente, estava próximo ao meu destino, entre eu e minha oportunidade, apenas duas quadras, a chuva, o horário, o calor dos sonhos e a dor do Sr. Custódio.
Parti em disparada e o semáforo fechou. Olhei atônito para o relógio. Encharcado, fedorento, com dor física, com dó do Sr. Custódio. Em São Paulo:14h10. Mais dez, somente dez, um perdão caberia na ocasião, qualquer ser humano paulistano seria capaz de perdoar um reles atraso de dez minutinhos, sobretudo em uma MULTINACIONAL.
Cheguei!!!!!Ao menos na portaria do edifício, suntuoso prédio. Mármore no chão, pilares em estilo romano e uma fila quilométrica na recepção. Na fila, aproveitei para ajeitar os cabelos molhados, a gravata e secar o rosto. O reflexo da porta de vidro mostrou que minha aparência estava deplorável,mas seria melhor nem pensar nisso. 14h21:São Paulo.
Finalmente, depois de minutos que pareceram horas, fui atendido. Dados solicitados: nome, empresa a visitar, contato e ramal. 9º andar...subiria de escadas,já que sofria de claustrofobia. Aguardei mais um pouco que pareceu muito. A recepcionista ao telefone solicitava minha autorização de embarque aos meus objetivos. Ela coloca o fone no gancho, prepara seu olhar mais piedoso e declara mecanicamente: "Sinto muito senhor,mas o senhor não vai poder estar subindo porque o processo de seleção acabou".
Sem ar, sem chão, visão turva, faltou coragem de gritar, sobrou vontade de chorar esperneando feito criança. Eu merecia ao menos ser atendido. Ouvi um zumbido no meu ouvido e uma voz feminina que chamava "Próximo!"
Calei-me, dei alguns passos, tonto, enjoado,decepcionado. Lembrei do Sr. Custódio. Tive raiva, compaixão, autopiedade. Repentinamente, comecei a gritar no hall do suntuoso edifício. Gritei, xinguei, cuspi nos pilares romanos e minha vista escureceu.
Acordei doze horas depois, num leito de hospital, localizado nas imediações da Avenida Rebouças. Havia sido sedado e estava sendo assistido por um Dr. Marco Antônio de Alguma Coisa.
Lembrei de tudo que gostaria de esquecer, dia odioso, chuva inoportuna,sol escaldante,o senhor Custódio. Poderia ficar preso àquele leito para sempre, já que não tinha ideia do que faria com relação a meu futuro. Não, não comeria a comida do hospital! Passei umas três horas desviando meu olhar entre o teto branco e as persianas fechadas da janela.
Chegou a noite e o médico plantonista me examinou e suspendeu a medicação. Informou que eu continuaria em observação até a manhã seguinte e perguntou se eu gostaria de entrar em contato com algum parente. Passei o telefone de casa e ele pediu que a enfermeira fizesse a ligação para avisar minha esposa.
Ainda sob efeito de calmantes, ouvi um barulho de pessoas correndo, macas, aparelhagens. Por toda a noite, médicos e enfermeiras entravam e saiam do quarto 1421. Eu só queria dormir...
- Entrou em óbito?
- Infelizmente...
- Qual o nome do paciente?
- Custódio de Oliveira Filho.
- Nome pomposo, quem ele era?
- Ninguém...