terça-feira, 18 de agosto de 2015

A Primeira Noite Legendária - Desenconto 6

O que há afinal entre o passado e o futuro? Naquele sábado, Lilith e Malu não estavam para muitos questionamentos existenciais, aliás, o que acontecia fora das paredes da casa de Lilith, pouco interessava para elas. Achavam que tudo o que a noite podia lhes oferecer era um pouco de introspecção, cerveja gelada, música baixa, conversa amena e um breve sobrevoo pela região da Faria Lima...coisas básicas que permitiriam que ambas dormissem cedo.
Acontece que o Destino é um deus implacável que normalmente se alia com o Tempo, então a cerveja acabou rápido demais e ainda havia conversa um bocado de conversa para acontecer. Amigas que são, poucas palavras são necessárias para que o entendimento se estabeleça entre elas e sem trocar palavra, através de uma simples e telepática troca de olhares, Lilith e Malu levantaram-se do sofá e saíram em busca de mais néctar da plena luminosidade espiritual...
Olhando para o chão, enquanto conduziam a conversa infinita, os pés pareciam rápidos demais, feito borrões de uma pintura de natureza viva. A noite ao contrário, desenhava nuances em luz e sombra em câmera lenta ao redor das duas. Sem que dessem conta, se viram paradas em frente ao portal do Umbral. Óbvio que não entrariam, não podiam se atrasar para o sobrevoo na Faria Lima: voar, queimar e enfim que ressurgissem das cinzas.
Um cigarro, outro cigarro e indecisão. E então, a noite acelerou repentinamente...
Foi quando Lilith acompanhou com seus olhos a direção que tomava a fumaça de seu cigarro, e encontrou outro olhar, atrás de outra fumaça, no topo da escadaria que dava acesso ao Umbral. Era um “ele” que magneticamente atraiu Lilith...um “ele” de cabelos claros e longos, de olhar que se perdia e que Lilith encontrava, e ela devolvia o olhar com languidez e ele jogava de volta, e foram necessários poucos segundos para que Lilith soubesse que queria estar ali...
Diante da relutância de Malu, Lilith acendeu outro cigarro na tentativa de buscar uma boa argumentação para que ela acatasse sua necessidade de se aproximar daquele “ele”. Nem foi necessário que terminasse o cigarro, havia um outro cara escondido na penumbra do pilar que demarcava o portal do Umbral... perfeito para convencer Malu. E então, as duas passaram a querer estar ali...
Subiram com rapidez impressionante a escadaria que as levaria para o Umbral. Os olhares não mais se desvincularam, por toda a extensão do Umbral e por maior que fosse a distância, permaneciam conectados por uma teia energética invisível. Por alguns minutos, Malu esqueceu-se do compromisso que tinha e determinada partiu para o front daquela guerra silenciosa e travada por uns olhos esquivos no meio da noite alaranjada.
Percorriam o ambiente, voltavam para as proximidades do pilar de aceso, num misto de inquietação e paz, carregando o néctar em copos coloridos, acendendo um cigarro após o outro, trocando poucas palavras. Sem aviso prévio, num ímpeto sem igual, Malu se dirigiu ao rapaz pelo qual ela queria estar ali. Isqueiro?Sim . Era uma noite qualquer, um sábado para não sair de casa, fazendo reflexões sobre o que existe entre o passado e o futuro. Mas, alguma coisa mudaria para sempre...
E foram conversando, se entendendo ,sorrindo para a noite cor de laranja. O nível de entendimento entre eles era incrível, a paz veio com as risadas fáceis e incrivelmente capacitadas para recobrar algumas crenças já há tempos abolidas por Malu e Lilith. Não era possível mensurar o tempo que conversaram, podem ter sido poucos minutos ou uma dezena de horas. A verdade é que havia o voo, o compromisso estabelecido e as duas teriam que deixar Andreas e Johnny seguirem seu caminho. Não era o planejado encontrá-los no Umbral, portanto teriam que cumprir o que haviam prometido, iriam sobrevoar a Faria Lima, queimar e voltar das cinzas. Avisaram aos dois, na despedida dois beijos que ao certo ninguém sabe quem tomou a iniciativa com quem, importando apenas que foram muito auspiciosos.
Elas achavam que nunca mais iriam encontrá-los, eles ficaram com uma promessa pairando no ar nebuloso da noite...
Malu voou, queimou completamente e se recompôs das cinzas; tendo pleno êxito na execução do ritual. Já Lilith, se atrapalhou muito para alçar voo, queimou quase plenamente, mas na recomposição a partir das cinzas, percebeu que restaram algumas partes suas inteiras ...talvez, nunca possam ser recompostas...
Sem delongas, sem refletir muito a respeito da profundidade do ritual de ressurgir das cinzas, ambas retornaram o quanto antes para o Umbral. Na verdade, mais para constatar que Andreas e Johnny haviam se embrenhado na escuridão da madrugada e seguido uma estrada que era só deles. Ao chegarem, em detrimento do que previam os oráculos e as racionais probabilidades, lá estavam os dois com mais um amigo, chamado Gaudério. Mas como nem tudo é fácil para essas duas, ao pedirem mais duas garrafas do néctar, o administrador do Umbral as informou que todo o líquido disponível no estabelecimento havia acabado e que, naquele horário, só havia um lugar no qual poderiam encontrar mais néctar: O Inferno!
Sem titubear, seguiram velozmente para O Inferno, afinal a promessa da noite sem fim devia ser cumprida! Seguiram entre árvores de grande porte, arbustos, ouviram pios de corujas, cruzaram as trilhas que passam perto do Vale dos Ventos. Quando quase chegavam à porta do Inferno, perceberam um amontoado de coisas depositadas numa encruzilhada próxima. Curiosos e empolgados pela noite que seguia divertida, se aproximaram e viram que era um despacho de uma almôndega gigante, circundada por penas amarelas...muito estranho. Mas, nem perderam muito tempo com reflexões acerca disso...era tudo leveza, bom papo e risadas altas cortando a madrugada.
Lilith e Andreas sentaram na guia da calçada, nunca mais pararam de conversar e se beijar. Malu e Johnny estavam de pé, nunca mais pararam de beijar e conversar. Gaudério estava conosco e Malu, solidária que é, achou que devia intervir para que ele também tivesse companhia noite adentro...ou afora. Bem é sabido que ela não enxerga muito bem de longe, a questão é que Johnny também não! E os dois selecionaram uma pessoa que sob a neblina densa da noite e a uma distância considerável,podia até ser considerada bonita. Chamaram a moça para apresentá-la para Gaudério...a lua do céu era nova, pouco servindo para iluminar as ruas. A pessoa foi se aproximando, feito cena de filme de suspense, com passos abafados pelo asfalto...francesa, a moça!” Très chique! Je suis Bete!!!”
Gaudério, tomado por um pânico, se encolheu e emudeceu completamente. Dentro de poucos minutos, resolveu seguir para sua casa, tamanho o medo que sentiu perante a imagem assustadora de Bete. Bem provável que ela fosse herdeira do Inferno...mas, são só suposições. Porém, Andreas e Lilith nem perceberam o aspecto da moça, tão inseridos que estavam num Universo Paralelo criado a partir de suas ideias...Andreas contava meticulosamente sobre sua experiência na travessia do Mar Negro, Lilith não parava de fazer perguntas. Queria saber sobre a Bulgária, a Ucrânia, A Rússia...
Nesse momento, repentinamente, Lilith pega a chave de acesso à Cápsula de Teletransporte com Malu. Sugeriu então a Andreas que a acompanhasse, deixando subentendido que ambos se entregariam a uma experiência intensa . Eles cruzaram pelo atalho, entraram na cápsula e nem as paredes transparentes dela puderam impedir a realização de uma profunda fusão que acontecia a despeito de pessoas passando e espiando o que ocorria em seu interior. Aos menos, a nudez parcial de seus corpos estava protegida do vento frio...
O Inferno estava lotado de almas que buscavam algo para saciar suas infindáveis necessidades: de beber, de comer, de sentir... Malu, uma vez que havia abdicado de usufruir da Cápsula de Teletransporte, resolveu entrar no Inferno acompanhada por Johnny. Entraram e conseguiram explorar até a sexta camada do Inferno. Cansados de tamanha exploração, resolveram encostar numa carruagem que estava parada em frente ao Inferno. Talvez tenha sido deixada ali há muito tempo, afinal é sabido por todos que no Inferno a cronologia é completamente diferente da que temos na Terra. Johnny não quis ficar por muito tempo perto da carruagem, talvez com certo receio do possível confronto com o dono do veículo...
A madrugada seguia, pessoas vieram e foram, mas os quatro permaneciam às portas do Inferno. Esfriara muito, mas nada servia de empecilho ao encontro que se dava. A noite nunca acabou...até que começassem a despontar os primeiros raios de sol...
Resistentes, os quatro seguiram para uma cabana que oferecia café e pão. Permaneceram sentados e conversando até acabar todo o café do estabelecimento. Andreas foi o primeiro a partir, morava nas imediações. Passados alguns minutos, Malu, Johnny e Lilith seguiram rumo às suas casas na Cápsula de Teletransporte. No meio do trajeto, encontraram um ser angelical chamado Punky que os seguiu com o olhar durante largo tempo...
Seria uma benção? Seria bom voltar a crer que havia algo de real entre o passado e o futuro? Seria mais um momento a se perder no meio do tempo?
Ninguém queria saber de nada, afinal não há respostas para quem decide viver apenas no presente. Talvez o ritual do voo dedicado a Fênix tenha funcionado e em meio a tantas máculas do passado, o destino deu um sábio jeito de colocar pessoas boas no caminho das duas amigas. Eram tão similares em suas esperanças, dores, planos, alegrias, histórias...eles poderiam pertencer ao futuro do presente? Tomara...pois havia ficado nas entrelinhas que deviam se juntar novamente em novas noites eternas,etéreas...legendárias.

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