terça-feira, 11 de agosto de 2015

Sepultamento ( da série Uspinianas...)

As vidas daquelas pessoas era completamente separada apesar do grau de parentesco que os unia e à pequena distância que separava suas residências. Acontece que o conceito de família antes de integrar,acaba desagregando a família original. Isso é fácil de explicar...as pessoas se casam, sonham ter filhos,às vezes têm filhos, compram casa na cidade, casa no campo,casa na praia,colocam os filhos nas melhores escolas particulares, viajam para o exterior nas férias, possuem todas as inovações tecnológicas em suas nobres residências; mas se afastam completamente do que é essencial.
Eu andava só nas imediações da Avenida Rebouças, sozinho com meus pensamentos e guardando nos bolsos do suéter minhas mãos, temendo a provável chuva que em breve cairia em São Paulo e que caso se efetivasse, seria a cruel responsável por arruinar minha aparência de candidato a uma vaga de emprego, há muito almejada.
Estava indo para uma entrevista em uma empresa "MULTINACIONAL", orgulhoso do curriculum que ora me possibilitava participar deste processo seletivo. Finalmente a recompensa! Não fora em vão os anos arrastados de dupla jornada,pois a partir dos treze anos de idade eu trabalhava e estudava com afinco, sempre aproveitando oportunidades de fazer cursos extracurriculares:digitação, programação júnior, técnico de manutenção e ar-condicionado,técnicas administrativas, noções de matemática financeira, paisagismo, jazz, técnica de segurança do trabalho , técnicas ninja e milenares de massagem hinduísta, meio-oficial mecânico/hidráulico/eletrizante, respiração tibetana para momentos de crise existencial, dentre tantos outros cursos que não convêm expor neste colóquio.
Vesti meu melhor sapato, calcei minha melhor roupa...comprei terno para ir ao casamento da minha prima Janete...era esse meu traje. Essa prima fez um excelente casamento com o açougueiro do bairro que,por sinal, era primo de quinto grau do dono da padaria e este por sua vez era namorado da filha de meu vizinho.
Nossa, belíssimo casamento! Os pais do noivo alugaram uma casa no litoral norte paulista, de frente para o mar. A festa deu-se na areia escaldante da praia e eles disseram o "sim" perante um lindo pôr-do-sol.
O vestido da noiva era dourado...sua visão envolvida pela névoa criada pelos raios de sol,ofuscava meus olhos, já bastante estremecidos pelo sufoco que eu passava trancado dentro do meu terno preto. Affff! Quanto calor passei naquele dia...mas valeu a pena, me senti confortado por ver minhas tias velhas caindo pela areia como peças de dominó, umas sobre as outras.
Era um tal de pernas para o alto, vestidos longos de cetim preto ou vermelho rasgando pela ação dos tombos que elas levavam; sem contar o desperdício dos espetinhos de carne que,nesses momentos voavam longe e se misturavam à areia da praia. Sorte de algumas crianças esfomeadas que aproveitavam e comiam tudo o que caía ao chão.
Era quase certo que a chuva cairia, como paulistanos, não somos capazes de explicar de onde vem esse dom inato de meteorologistas que carregamos. O sol tostava meu rosto e pelo fato de estar há nove meses desempregado, não dispunha de verba para pegar o ônibus que faria o trajeto até o local da entrevista, fui caminhando e desintegrando sob um calor de 35 graus celsius.
Mais apropriado seria, se eu estivesse usando uma burca,mas não sei se cairia bem para um homem. Homens árabes também a usam? Sei quase nada sobre a cultura árabe.
Acabava de atravessar o trecho da Avenida Rebouças que cruza com a Henrique Schaumman, quando percebi um homem cambaleante a uns cinco metros de distância. Já estava tostado, no inferno,prestes a conhecer o capiroto, não seria sacrifício algum correr em socorro daquele pobre diabo. Cheguei ao lado dele quase desfalecido,mas tive rápido reflexo para ampará-lo quando ele desfaleceu.
Entrei em desespero e nenhum transeunte parava para nos auxiliar. Gritei, me descabelei e transpirei como nunca. Tentei respiração boca-a-boca e nem sinal de recuperação dos sentidos,por parte do senhor. Com ele em meus braços, pude notar os sulcos formados por rugas profundas que se formavam em seu rosto, sua mão magra e frágil segurava fortemente alguns papéis e sentia sua pele extremamente fria. Apavorei-me e foi neste momento que percebi uma viatura policial vindo em nosso auxílio.
A ansiedade tomava conta de mim, estava preocupado em chegar à entrevista de emprego agendada para as 14 horas;olhava o relógio preso ao meu pulso direito quando o policial perguntou se eu era parente da vítima, indagação que respondi prontamente com uma negativa.
Enquanto meu olhar se perdia entre a obstinação de chegar a meu compromisso e aquele homem estendido no chão quente de uma tarde ensolarada, ouvi quando um dos policiais pronunciou o nome daquele senhor: Custódio de Oliveira Filho. Eles o levariam para um hospital nas redondezas...
Fui dispensado pelos oficiais e saí culpado, pesado como o céu que se precipitaria sobre minha cabeça, à frente, somente a promessa de tempestade. A tormenta havia iniciado pelos pensamentos que invadiam minha cabeça, ora com preocupações acerca do Sr. Custódio ora ansioso pela entrevista de emprego tão esperada. Em São Paulo: 13h30. Teria pouco tempo para chegar a meu compromisso, começava a chuva...corri o mais rápido que pude, quando lembrei do professor de física falando:"Não adianta correr sob a chuva porque a superfície de contato é a mesma". Corri mesmo assim...
Subia do asfalto um bafo de calor insuportável e eu tendo que administrar a chuva, o horário, Sr. Custódio, meus sonhos. Em São Paulo: 13h50.
Cada vez que meus pés tocavam o solo, sentia bolhas eclodindo em meus pés e o calor aumentava a dor latejante. Preferi nem pensar em como meu corpo ficaria no dia seguinte.
Eis que finalmente, estava próximo ao meu destino, entre eu e minha oportunidade, apenas duas quadras, a chuva, o horário, o calor dos sonhos e a dor do Sr. Custódio.
Parti em disparada e o semáforo fechou. Olhei atônito para o relógio. Encharcado, fedorento, com dor física, com dó do Sr. Custódio. Em São Paulo:14h10. Mais dez, somente dez, um perdão caberia na ocasião, qualquer ser humano paulistano seria capaz de perdoar um reles atraso de dez minutinhos, sobretudo em uma MULTINACIONAL.
Cheguei!!!!!Ao menos na portaria do edifício, suntuoso prédio. Mármore no chão, pilares em estilo romano e uma fila quilométrica na recepção. Na fila, aproveitei para ajeitar os cabelos molhados, a gravata e secar o rosto. O reflexo da porta de vidro mostrou que minha aparência estava deplorável,mas seria melhor nem pensar nisso. 14h21:São Paulo.
Finalmente, depois de minutos que pareceram horas, fui atendido. Dados solicitados: nome, empresa a visitar, contato e ramal. 9º andar...subiria de escadas,já que sofria de claustrofobia. Aguardei mais um pouco que pareceu muito. A recepcionista ao telefone solicitava minha autorização de embarque aos meus objetivos. Ela coloca o fone no gancho, prepara seu olhar mais piedoso e declara mecanicamente: "Sinto muito senhor,mas o senhor não vai poder estar subindo porque o processo de seleção acabou".
Sem ar, sem chão, visão turva, faltou coragem de gritar, sobrou vontade de chorar esperneando feito criança. Eu merecia ao menos ser atendido. Ouvi um zumbido no meu ouvido e uma voz feminina que chamava "Próximo!"
Calei-me, dei alguns passos, tonto, enjoado,decepcionado. Lembrei do Sr. Custódio. Tive raiva, compaixão, autopiedade. Repentinamente, comecei a gritar no hall do suntuoso edifício. Gritei, xinguei, cuspi nos pilares romanos e minha vista escureceu.
Acordei doze horas depois, num leito de hospital, localizado nas imediações da Avenida Rebouças. Havia sido sedado e estava sendo assistido por um Dr. Marco Antônio de Alguma Coisa.
Lembrei de tudo que gostaria de esquecer, dia odioso, chuva inoportuna,sol escaldante,o senhor Custódio. Poderia ficar preso àquele leito para sempre, já que não tinha ideia do que faria com relação a meu futuro. Não, não comeria a comida do hospital! Passei umas três horas desviando meu olhar entre o teto branco e as persianas fechadas da janela.
Chegou a noite e o médico plantonista me examinou e suspendeu a medicação. Informou que eu continuaria em observação até a manhã seguinte e perguntou se eu gostaria de entrar em contato com algum parente. Passei o telefone de casa e ele pediu que a enfermeira fizesse a ligação para avisar minha esposa.
Ainda sob efeito de calmantes, ouvi um barulho de pessoas correndo, macas, aparelhagens. Por toda a noite, médicos e enfermeiras entravam e saiam do quarto 1421. Eu só queria dormir...
- Entrou em óbito?
- Infelizmente...
- Qual o nome do paciente?
- Custódio de Oliveira Filho.
- Nome pomposo, quem ele era?
- Ninguém...

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