segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Fragmento: A decisão

A decisão

O homem entrou em casa e com passadas firmes foi reto procurar a mulher que estava na cozinha, enchendo a chaleira d'água. Ele tinha a cara rubra, os olhos brilhantes mas os lábios estavam brancos e secos, teve que passar a ponta da língua entre eles para separá-los, a saliva virou cola? Antes de dizer o que estava querendo dizer há mais de cinco anos e não dizia, adiando, adiando. Esperando uma oportunidade melhor e vinha uma oportunidade melhor e faltava a coragem, esmorecia, quem sabe na próxima semana, depois do aniversário do Afonsinho? Ou em dezembro, depois do aumento nos vencimentos e aumento da inflação? Espera, agora a Georgeana pegou sarampo, deixa ela ficar boa e então. E então? Hoje, HOJE! Tinha que ser hoje, já! As grandes decisões eram assim mesmo, como numa batalha, seguir a inspiração do momento e o momento era inadiável, maduro, estourando como um fruto, ele estourando também, aproveitar essa energia de lutador que lhe viera de um jato, sentiu-se um Napoleão, iluminado, o dedo apontando na direção do inimigo, avançar! Avançou e a fala ficou sem pausa e sem hesitação, fala treinada há cinco anos, ir no alvo, depressa! ia deixá-la, era isso, ia deixá-la porque estava loucamente apaixonado por outra e de joelhos pedia perdão pelo sofrimento e pelo desgosto, está certo, podia chamá-lo de crápula por deixar uma esposa tão perfeita e uns filhos tão queridos mas se ficasse a vida acabaria num inferno tão insuportável que era melhor dizer tudo agora porque ia morrer se não dissese esta coisa que lhe caíra na cabeça como um tijolo, esta paixão avassaladora, talvez se arrependesse um dia e até se matasse de remorso mas agora tinha que confessar, estava apaixonado por outra e ela devia entender e mais tarde os filhos iam entender também que tinha que ir porque estava APAIXONADO POR OUTRA - você está me ouvindo?

A mulher pelejava por acender o fósforo úmido, não conseguiu, riscou outro palito e o palito falhou e experimentou o terceiro enquanto lhe gritava que chegasse dessa brincadeira besta, já não bastavam as crianças que hoje estavam impossíveis e também ele agora atormentando, hein?! Empurrou-o na direção da porta , mas vamos, não fique aí com essa cara, depressa, vá buscar uma caixa de fósf... ah! graças a Deus que este não molhou, vontade de um café bem quente, café com pão, de qualquer jeito ele tinha que sair para buscar pó de café e depressa que logo, logo, a água estaria fervendo, queria o pó moído na hora e meia dúzia de pãezinhos que deviam estar saindo do forno e levasse também o Júnior que estava se pegando lá com o irmão, mas se mexa, homem! está com o dinheiro aí? E claro, também um pacote de fósforos da marca Olho (e riu) que este é marca barbante pra não dizer outra marca que começa com m (enxugou as mãos no avental), como se não bastassem as gracinhas do filho e também ele com as brincadeiras debilóides, um pouco velho pra brincar assim, não?

O homem pegou o Júnior pela mão, foi buscar o pó de café, os pãezinhos, os fósforos e não brincou mais.


(Lygia Fagundes Telles.In: A disciplina do amor)

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